quinta-feira, 12 de abril de 2012

Potencial criador

O potencial criador é um fenômeno de ordem mais geral, menos específica do que os processos de criação através dos quais o potencial se realiza.

Em cada função criativa sedimentam-se certas possibilidades; ao se discriminarem, concretizam-se. As possibilidades se tornam reais. Com isto excluem outras que até então, e hipoteticamente, também existiam. É nesse sentido, e unicamente nesse sentido, que no formar todo construir é um destruir. Tudo o que num dado momento se ordena, afasta por aquele momento o resto do acontecer. É um aspecto inevitável que acompanha o criar, e apesar de seu caráter delimitador, não deveríamos ter dificuldades em apreciar suas qualificações dinâmicas. Já nos prenuncia o problema da liberdade e dos limites.


Quando se configura algo e o define, surgem novas alternativas. O processo de criar é um processo contínuo que se regenera por si mesmo, e onde o ampliar e o delimitar representam aspectos concomitantes, aspectos que se encontram em oposição e tensa unificação. A cada etapa, o delimitar participa do ampliar. Há um fechamento, uma absorção de circunstâncias anteriores, e, a partir do que anteriormente fora definido e delimitado, se dá uma nova abertura. Da definição que ocorreu, nascem as possibilidades de diversificação. Cada decisão que se toma, representa assim, um ponto de partida, num processo de transformação que está sempre recriando o impulso que o criou.


O potencial criador elabora-se nos múltiplos níveis do ser e se faz presente nos múltiplos caminhos em que o homem procura captar e configurar as realidades da vida. Os caminhos podem cristalizar-se e as vivências podem integrar-se em formas de comunicação, em ordenações concluídas, mas a criatividade como potência se refaz sempre. A produtividade do homem, em vez de se esgotar, liberando-se, se amplia.

Livro: Criatividade e Processos de Criação - Fayga

Formas simólicas e ordenações

Ao simbolizarem, as palavras caracterizam uma via conceitual. Essencialmente, porém, no cerne da criação está a nossa capacidade de nos comunicarmos por meio de ordenações, isto é, através de formas. Se a fala representa um modo de ordenar, o comportamento também é ordenação.

Por meio de ordenações se objetiva um conteúdo expressivo. A forma converte a expressão subjetiva em comunicação objetivada. Por isso, o formar, o criar, é sempre um ordenar e comunicar. Não fosse assim, não haveria diálogo. Na medida em que entendemos o sentido de ordenações, respondemos com outras.

Qualquer tipo de ordenação torna-se signifcativa para nós. Ao percebê-la projetamos de imediato algum sentido ao evento. Mas somente quando na forma se estruturam aspectos de espaço e tempo, mais do que assinalar o evento, poderá a mensagem adquirir as configurações de forma simbólica.

As figuras espaço/tempo são percebidas como um desenvolvimento formal. Tais figuras traduzem certos momentos dinâmicos do nosso ser, ritmos internos de vitalidade, de acréscimo ou declínio de forças, correspondendo ainda a certos estados de ânimo e de equilíbrio interior, entusiasmo, alegria, tristeza, melancolia, apatia, hostilidade, serenidade, etc.

É em termos espaciais e temporais (qualificações de vida), ou seja, em termos de um movimento interior, que avaliamos a percepção de nós mesmos e de nossa experiência do viver. Mobilizando-nos, as ordenações da forma simbólica rebatem em áreas fundas do nosso ser que também correspondem a ordenações. Trata-se, nessas ordenações interiores, de processos afetivos, ou seja, de formas do íntimo sentimento da vida. São as 'nossas formas' psíquicas.


As 'nossas formas' se constituem em referencial para avaliarmos os fenômenos, em nós e ao redor de nós. É o aspecto individual no processo criador, de unicidade dentro dos valores coletivos. Ainda que em cada pessoa as potencialidades se realizem em interligação com fatores externos, existem sempre fatores internos que não podemos desconsiderar. Todo perceber e fazer do indivíduo refletirá seu ordenar íntimo. O que ele faça e comunique, corresponderá a um modo particular de ser.


Vemos o ato criativo vinculado a uma série de ordenações e compromissos internos e externos.

Capacidades unicamente humanas

Na percepção de si mesmo o homem pode distanciar-se dentro de si e imaginativamente colocar-se no lugar de outra pessoa. Em virtude do distanciamento interior, a expressão de sensações pode transformar-se na comunicação de conteúdos subjetivos. O homem pode falar com emoção, mas ele pode falar também sobre suas emoções. Estende a comunicabilidade a conteúdos intelectuais. Ele pensa e pode falar sobre seus pensamentos. O homem pode formular ideias e hipóteses de crescente complexidade intelectual e comunicá-las aos outros como propostas de futuras atividades.

Ao homem torna-se possível falar, refletir e perfazer toda espécie de abstrações mentais porque, com sua percepção consciente, ele consegue dissolver situações globais em conteúdos parciais. Isto está fora das possibilidades dos animais, que reagem a situações globais concretas. Destacados de um todo, os múltiplos componentes expressivos podem ser parcelados, codificados individualmente e podem ser recombinados para formarem outras totalidades. Os mesmo componentes individuais configuram novos conteúdos.

Cada língua encerra em si, em sua forma, uma atitude básica valorativa. Por isto é tão difícil traduzir. Nos vários modos de se enfocarem áreas de experiência humana e modos de participação social, nas muitas línguas, se refletem os acervos de muitas culturas. Na multiplicidade das culturas tem-se observado um aspecto caracteristicamente humano. (não a cultura, mas sim o pluralismo de culturas, das variadas possibilidades, é característico para a espécie humana. Em sua produção de culturas, o homem parece ter sido tão fértil quanto à própria natureza em sua produção de espécies.)

As línguas são experiência coletiva, no sentido de nelas a experiência e a criatividade individual se tornarem anônimas. No mesmo sentido, as línguas são criação cultural; constituem o ambiente humano que age sobre o indivíduo, o qual por sua vez atua sobre o ambiente. Por isso, ainda que a capacidade de falar e de simbolizar seja um potencial inato, o aprendizado da fala implica um aprendizado cultural; o potencial natural da língua, cada indivíduo o realiza num dado contexto cultural. Molda sua experiência pessoal nas relações culturais possíveis.

Livro: Criatividade e Processos de Criação - Fayga

Associações mentais

Provindo de áreas inconscientes do nosso ser, ou talvez pré-conscientes, as associações compõem a essência de nosso mundo imaginativo. São correspondências, conjeturas evocadas à base de semelhanças, ressonâncias íntimas de cada um de nós, com experiências anteriores e com todo um sentimento de vida.

Espontâneas, as associações afluem em nossa mente com uma velocidade extraordinária. Não se pode fazer um controle consciente delas. Às vezes, ao querer detê-las, elas já nos escaparam. Elas interligam ideias e sentimentos. As reconhecemos como nossas, como sendo de ordem pessoal. Por mais inesperadas que sejam, elas condizem com um padrão de comportamento específico nosso face a ocorrências que nos envolvam.

As associações nos levam para o mundo de fantasias. Geram nosso mundo de imaginação. Um mundo experimental, de um pensar e agir em hipóteses. O que dá amplitude à imaginação é essa nossa capacidade de perfazer uma série de atuações, associar objetos e eventos, poder manipulá-los, tudo mentalmente, sem a presença física.

O nosso mundo imaginavito será povoado por expectativas, aspirações, desejos, medos, por toda sorte de sentimentos e de 'prioridades' interiores. As prioridades interiores influem em nosso fazer e naquilo que 'queremos' criar.

Grande parte das associações liga-se à fala, pois muito do que imaginamos é verbal, ou torna-se verbal, traduz-se em nosso consciente por meio de palavras. Pensamos através da fala silenciosa. Pensa-se falando.

Cada um de nós pensa e imagina dentro das propostas de sua cultura. Quando se fala, recolhe-se desse acervo, língua e de propostas possíveis, uma determinada parte que corresponde à experiência particular vivida. É o que se quer transmitir e também o que se pode transmitir. A fala se articula, portanto, no uso concreto da língua, uso sempre parcial porque adequado à área vivencial do indivíduo.

Usamos palavras. Elas servem de mediador entre o nosso consciente e o mundo. Quando ditas, as coisas se tornam presentes para nós. Na língua, como nos processos de imaginação, dá-se um deslocamento do real físico do objeto para o real da ideia do objeto. A palavra evoca o objeto por meio de sua noção. Entretanto, qualquer noção já surge em nossa consciência carregada de certos conteúdos valorativos, pois, como todo o agir do homem, também o falar não é neutro, não se isenta de valores.

Dando nome as coisas, o homem as identifica e ao mesmo tempo generaliza. Capaz de perceber o que é semelhante nas diferenças e o que é diferente nas semelhanças. Exemplo, ele percebe a árvore, e na árvore uma árvore, uma de muitas árvores. Nas árvores ele vê uma planta, e nas plantas uma forma de vida. Assim o homem discrimina, compara, generaliza, subtrai, conceitua. Passa a compreender cada fenômeno como parte de um padrão de referências maior. Ser simbólico por excelência, ele concebe abrangências recíprocas: do único dentro do geral, do geral dentro do único.

Livro: Criatividade e Processos de Criação - Fayga

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Ser cultural e Ser consciente

Ser cultural

Segundo os conhecimentos atuais a respeito do passado, o homem surge na história como um ser cultural. Ao agir, ele age culturalmente, apoiado na cultura e dentro da cultura.

Procuramos definir aqui o que entendemos por cultura: são as formas materiais e espirituais com que os indivíduos de um grupo convivem, nas quais atuam e se comunicam e cuja experiência coletiva pode ser transmitida através de vias simbólicas para a geração seguinte.

Ser consciente

Ao se tornar consciente de sua existência individual, o homem não deixa de conscientizar-se também de sua existência social, ainda que esse processo não seja vivido de forma intelectual. O mode de sentir e de pensar os fenônmenos, o próprio modo de sentir-se e pensar-se, de vivenciar as aspirações, os possíveis êxitos e eventuais insucessos, tudo se molda segundo idéias e hábitos particulares ao contexto social em que se desenvolve o indivíduo. Os valores culturais vigentes constituem o clima mental para seu agir. Representanto a individualidade subjetiva de cada um, a consciência representa a sua cultura.

Como ser  que se percebe e se interroga, o homem é levado a interpretar todos os fenômenos; nessa tradução o âmbito cultural transpõe o natural. A própria natureza em suas manifestações múltiplas é filtrada no consciente através de valores culturais, submetida a premissas que não se isentam das atitudes valorativas de um contexto social.

Nos processos de conscientização do indivíduo, a cultura influencia também a visão de vida de cada um. Orientando seus interesses e suas íntimas aspirações, suas necessidades de afirmação, propondo possíveis ou desejáveis formas de participação social, objetivos e ideais, a cultura orienta o ser sensível ao mesmo tempo que orienta o ser consciente. Com isso a sensibilidade do indivíduo é aculturada e por sua vez orienta o fazer e o imaginar individual. Culturalmente seletiva, a sensibilidade guia o indivíduo nas considerações do que para ele seria importante ou necessário para alcançar certas metas de vida.

Nessa integração que se dá de potencialidades individuais com possibilidades culturais, a criatividade não seria senão a própria sensibilidade. O criativo do homem se daria ao nível do sensível. Como fenômeno social, a sensibilidade se converteria em criatividade ao ligar-se estreitamente a uma atividade social significativa para o indivíduo. No enfoque simultâneo do cosnciente, cultural e sensível, qualquer atividade em si poderia tornar-se um criar. Isso naturalmente, quando as circunstâncias da vida de um  indivíduo permitem. Quando sua atividade não se lhe apresenta significativa, de um modo geral não se dá a estimulação da sensibilidade e o fazer do indivíduo dificilmente chegará a ser criativo.

Livro: Criatividade e Processos de Criação - Fayga

Ser sensível

Como processos intuitivos, os processos de criação interligam-se intimamente com o nosso ser sensível. Mesmo no âmbito conceitual ou intelectual, a criação se articula principalente através da sensibilidade.

Inata  ou até mesmo inerente à constituição do homem, a sensibilidade não é peculiar somente à artistas ou alguns poucos privilegiados. Ela e patrimônio de todos os seres humanos. Ainda que em diferentes graus ou talvez em áreas sensíveis diferentes.

A sensibilidade é  uma porta de entrada das sensações. Representa uma abertura constante ao mundo e nos liga de modo imediato ao acontecer em torno de nós. Uma grande parte da sensibilidade, a maior parte talvez, permanece vinculada ao inconsciente. A ela pertencem as reações involuntárias do nosso organismo, bem como todas as formas de auto-regulagem. Uma outra parte porém, chega ao nosso consciente. Ela chega de modo articulado, isto é, em formas organizadas. É a nossa percepção. Abrange o ser intelectual, pois a percepção é a elaboração mental das sensações.

A percepção delimita o que somos capazes de sentir e compreender; corresponde a uma ordenação seletiva dos estímulos e cria uma barreira entre o que percebemos e o que não percebemos. Articula o mundo que nos atinge, o mundo que chegamos a conhecer e dentro do qual nos conhecemos. Articula o nosso ser dentro do não-ser.

A percepção permite que, ao apreender o mundo, o homem apreenda também o próprio ato de apreensão; permite que, apreendento, o homem compreenda.

Livro: Criatividade e Processos de Criação - Fayga

Influência cultural


O homem será um ser consciente e sensível em qualquer contexto cultural. A consciência e a sensibilidade das pessoas são qualidades comportamentais inatas, ao passo que a cultura representa o desenvolvimento social do homem. As culturas se acumulam, se diversificam, se complexificam e se enriquecem. Ou então também desenvolvems-e, se extinguem ou são extintas.


O potencial sensível e consciente de cada um se realiza unicamente dentro de formas culturais. O comportamento de cada ser humano se molda pelos padrões culturais, históricos, do grupo em que ele, indivíduo, nasce e cresce. Ele se desenvolverá com seu modo pessoal de agir, seus sonhos, suas aspirações e suas realizações.

A cultura serve de referência a tudo que o indivíduo é, faz, comunica, à elaboração de novas atitudes e comportamentos e, naturalmente, a toda possível criação.

Livro: Criatividade e Processos de Criação - Fayga