"Mesmo se formos amados, sofremos de uma insegurança elementar. Ainda que protegidos, seremos expostos a fatalidades e imprevistos contra os quais nada nos defende. Temos de criar barreiras e ao mesmo tempo lançar pontes com o que nos rodeia e o que ainda nos espera. Toda essa trama de encontro e separação, terror e êxtase encadeados, matéria da nossa existência, começa antes de nascermos.
A elaboração desse nós iniciado na infância ergue as paredes da maturidade e culmina no telhado da velhice, que é coroamento, embora em geral seja visto como deterioração.
Construir um ser humano, um nós, é trabalho que não tira férias nem concede descanso; haverá paredes frágeis, cáculos malfeitos, rachaduras. Quem sabe um pedaço que vai desabar. Mas se abrirão também janelas para a paisagem e varandas para o sol.
O que se produzir - casa habitável ou ruína estéril - será a soma do que pensaram e pensamos de nós, do quanto nos amaram e nos amamos, do que nos fizeram pensar que valemos e do que fizemos para confirmar ou mudar isso, esse selo, essa marca.
Nos primeiros anos quase tudo foi obra do ambiente em que nasci: família, escola, janelas pelas quais me ensinaram a olhar, abrigo ou prisão, expectativa ou condenação. Essa ambiguidade nos dilacera e nos alimenta. Nos faz humanos.
Logo não terei mais a desculpa dos outros: pai e mãe amorosos ou hostis, bondosos ou indiferentes, sofrendo de todas as naturais fraquezas da condição humana que só quando adultos reconhecemos. Por fim havemos de constatar: meu pai, minha mãe, eram apenas gente como eu. Fizeram o que sabiam, o que podiam fazer.
E eu... e eu?
Marcados pelo que nos transmitem os outros, seremos malabaristas em nosso próprio picadeiro. A rede estendida por baixo é tecida de dois fios enlaçados: um nasce dos que nos geraram e criaram; o outro vem de nós, da nossa crença ou nossa esperança."
Livro: Perdas e Ganhos
Autor: Lya Luft
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