"Eu aqui, um velho de 88 anos. Para os mais novos o Avô Eterno, o que não teve começo e nem terá fim, o que já veio ao mundo com esta cara enrugada. Eu aqui, preparo o almoço de família. Terei forças? 88: dois infinitos verticais. É boa idade, será uma bela festa. Tia Palma me ensinou a cozinhar, eu era jovem. Por onde andará Tia Palma? Às vezes, fica tempo sem aparecer. Às vezes, vejo-a perambulando pela casa com mamãe e papai e nem preciso de óculos. Chegam com diferentes idades, alegres ou preocupados, falantes ou silenciosos. Depende do dia, da hora em que os vejo. Imaginação? Sensibilidade? Perco noção. Perco? Me pego conversando com esse menino que era eu. Ou escrecendo alto comigo mesmo. Falo com meus queridos já distantes no tempo e no espaço. Às vezes, sinto medo, assobio no escuro. De repente, luz. Cinema! Me projeto histórias. Revejo meus irmãos de infância, nítidos, pulando uns nos outros, correndo e voltando para embolar feito cachorro novo. Revejo aquela minha Isabel apaixonada. Revejo meus filhos quando ainda estavam perto e eram meus. Lembranças vivas em todos os tendidos... Sigo em frente. Para o hoje - que eu amo! - e depois para onde o nariz aponta e a vista alcança e para mais além, aonde só a esperança vai. Sou passado, presente, futuro - três pessoas distintas reunidas numa só, mistério da terreníssima trindade...
Velho sente saudade de mãe e pais. Tudo faz tanto tempo! Velho quer colo, quer colher na boca vindo de longe com motor de aviãozinho, quer - banho tomado - que o ponham na cama, o aconcheguem com lençol limpo e travesseiro macio. Uma história conhecida, uma cantiga de ninar, um beijo de boa noite. A porta do quarto um pouquinho aberta, com a luz do corredor acesa - o ponto de referência é sempre bom. Velho sente falta de instância superior. Quem o julgará com isenção e sabedoria? Quem melhor que ele, saberá, imparcial, examinar o mérito da questão? Velho é criança com fôlego diferente. Já não lhe interessam as correrias nos jardins, o sobe e desce das gangorras, o vaivém dos balanços. É tudo muito pouco. O que ele quer agora é desembestar no céu, soltar os bichos que colecionou a vida inteira. Os bichos todos - domésticos, selvagesn, úteis e nocivos. Os pesados répteis que ainda guarda no coração... Tia Palma dizia que velho na horinha da morte conhece o máximo e o mínimo de si mesmo. É ao mesmo tempo elefante e louva-deus. É sequóia e flor-do-campo, oceano e poça de chuva, cordilheira e grão de sal. Ela garantia que a gente sabe direitinho quando acontece a transformação. A alma começa a emitir todos os sons da natureza... A alma do velho rosna, ameaçadora... A alma urra, uiva, grita...A alma se liberta rumo ao infinito e, aí sim.. canta a mais bela ária da mais bela ópera! Eu, criança, piamente acreditava. Depois, homem feito, achava graça. Faz algum tempo voltei a acreditar.
É na cozinha que eu desembesto e solto os bichos. ...Retratos falados - em voz alta, a família toda ao mesmo tempo. Destrambelhada família. Sagrada família...
Preciso me concentrar. É essencial... família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema... Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência. Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir.... vêm a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se vai comer... Mas a vida - azeitona verde no palito - sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida.... Como saiu seu álbum de retratos? ... Reúna essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte de sua vida... Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados... não se envergonhe se chorar. Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza.
... Família é prato extremamente sensível. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido. .. .saber meter a colher é verdadeira arte. O pior é que ainda tem gente que acredita na receita de família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. .. Família é afinidade... e cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.
Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada... que você só suporta para manter a linha. Seja como for, família é mesmo um prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de engolir.
Há famílias, por exemplo, que levam muito tempo para serem preparadas. Fica aquela receita cheia de recomendações de se fazer assim ou assado - uma chatice! Outras, ao contrário, se fazem de repente, de uma hora para outra, por atração física incontrolável - quase sempre de noite. Você acorda de manhã, feliz da vida, e quando vai ver já está com a família feita. Por isso é bom saber a hora certa de baixar o fogo. ..
Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia-a-dia. .. por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas... aproveite ao máximo. Família é prato que quando se acaba, nunca mais se repete.